segunda-feira, 28 de abril de 2025

 Reflexões sobre um ano após os eventos extremos de abril/junho de 2024 no Rio Grande do Sul

 Rafael Cabral Cruz, 28/04/2025.

Os desafios do enfrentamento de eventos extremos e de adaptação e mitigação das mudanças climáticas são enormes quando olhamos para o que está sendo encaminhado como políticas públicas para a reconstrução e recuperação do Rio Grande do Sul frente aos impactos socioambientais dos eventos extremos vividos em 2024. Nesta postagem vou colocar reflexões efetuadas a partir de perguntas efetuadas pelo jornalista Rafael Oliveira da Agência Pública.

Para responder à pergunta sobre se o estado do RS está preparado para enfrentar as consequências do colapso climático e do colapso civilizatório resultante, certamente não está. Para iniciar a resposta, convido para acessar a matéria sobre a enchente de abril/maio na cidade de São Gabriel, RS, publicada no dia 04 de maio de 2025: https://sociedadeculturaenatureza.blogspot.com/2024/05/precisamos-conversar-sobre-sistemas-de.html. Quando se fala de colapso civilizatório, fala-se da sociedade como um todo, de culturas, de sistemas de produção, de políticas públicas, das instituições e de como elas encaram e enfrentam os problemas. Embora a pauta das mudanças climáticas seja pauta internacional há muitas décadas, com divulgação dos relatórios do IPCC, de instituições como o INPE/CPTEC no Brasil e de vários grupos de pesquisa em universidades e instituições de pesquisa, os investimentos são insuficientes para ampliação e densificação das redes de monitoramento climático e hidrológico, de bancos de dados com informações sobre propriedades agroclimatológicas dos solos para fins de modelagem, como a capacidade de água disponível para diferentes classes de solos e de cobertura da terra (depende da profundidade efetiva de raízes) em escala compatível para o zoneamento de risco e para avaliação de déficits e excedentes hídricos, de levantamentos batimétricos de corpos de água integrados com topografia com escala compatível com modelos chuva-vazão para zoneamento de áreas de risco, entre outros estudos que subsidiam políticas públicas de prevenção, enfrentamento e mitigação de desastres naturais e planejamento ambiental integrado em bacias hidrográficas. Pode-se ver, na matéria do blog, como se poderia ter evitado danos à população ribeirinha de São Gabriel se os sistemas de monitoramento hidrológico e de defesa civil estivessem operacionais, com informações adequadas e com sistemas de alerta eficientes. 

No entanto, nem mesmo as universidades estão prontas para isso. Existem grupos dentro das universidades altamente capacitados, mas a maior parte dos servidores e estudantes não são preparados para atuarem de forma a internalizarem nas suas práticas de ensino, pesquisa e extensão os saberes e conhecimentos para que todas as dimensões da vida humana sejam objeto de reflexões e mudanças na direção da adaptação e mitigação das mudanças climáticas. Existe uma espécie de esquizofrenia institucional nas nossas universidades. Por exemplo, a Universidade Federal do Pampa, minha jovem instituição federal de ensino superior, foi criada, entre outras finalidades, para contribuir para o desenvolvimento sustentável da Metade Sul do Rio Grande do Sul, como consta no preâmbulo da sua lei de criação. Se temos este objetivo, devemos perguntar quais as ferramentas institucionais existentes para uma ação coordenada e efetiva para que isso aconteça, com metas discutidas e construídas junto com as nossas comunidades. Do ponto de vista financeiro: as universidades não tem autonomia orçamentária para construir, mesmo que parcialmente, um orçamento participativo com as comunidades, definindo as pautas do desenvolvimento sustentável, construindo conhecimento para elas, direcionando ensino, pesquisa e extensão para isso, de forma integrada e colaborativa, formando capital social para o desenvolvimento regional sustentável, os recursos são definidos de forma centralizada em Brasília. 

Vivemos um sistema produtivista, onde os critérios para avaliação das instituições, dos docentes, dos cursos e dos editais para pesquisa e extensão não incorporam as necessidades regionais do desenvolvimento e não abrem espaço para a integração universidade-comunidade. O sistema Qualis é baseado em métricas baseadas no Fator de Impacto das REVISTAS, não dos artigos. O artigo presente no seguinte link trata deste assunto: https://sociedadeculturaenatureza.blogspot.com/2011/10/publicacoes-cientificas-para-quem.html. Desta forma, tudo nas nossas instituições, de acordo com as regras do jogo dos sistemas de classificação de produção científica, produtivista (“fordista”), faz com que o objetivo da ação de nossas instituições seja atender às demandas das planilhas de avaliação de cursos de graduação e pós-graduação e para os requisitos de produção  das diferentes área de avaliação da CAPES e do Qualis, para fins de terem acesso ao credenciamento em cursos de pós-graduação, de acesso a recursos através de editais, colocando nossas instituições de costas para as comunidades. Publicações contendo conhecimentos úteis para o desenvolvimento regional não são aceitas normalmente nas revistas internacionais, que somente aceitam artigos em língua inglesa, mas que são as que pontuam mais nos sistemas de avaliação de produção. Os agentes regionais de desenvolvimento têm pouco ou nenhum acesso as esses artigos, que são tratados como mercadorias pelas editoras que monopolizam a maior parte dessas revistas. Os sistemas de avalição não podem criar uma oposição de conhecimentos universais ou regionais, pois a experiência regional de sucesso pode ser modelo para outras regiões do planeta. 

Assim, a maior parte dos planos políticos dos cursos não possuem disciplinas e abordagens transversais efetivas para que todos os egressos, de todos os cursos, estejam capacitados para pensar as interfaces entre sua atuação profissional e as demandas da adaptação e mitigação às mudanças climáticas. Não basta o voluntarismo de alguns grupos de excelência que existem hoje sobre o tema: tem que haver uma mudança estrutural no sistema para que seja possível este enfrentamento. Autonomia das universidades, inclusive com orçamento próprio para construir juntamente com as comunidades o financiamento de pesquisas e formação direcionadas para as necessidades do desenvolvimento regional, mudança nos sistemas de avaliação, colocando os objetivos institucionais como principal critério de avaliação. Os estudantes devem ser formados, primeiramente para se situarem no mundo e terem consciência de seu papel na construção de alternativas para a qualidade de vida e sustentabilidade, mas estes objetivos são antagônicos com a lógica acumuladora do capital. Nossas universidades tem cada vez mais se colocado como formadora de força de trabalho para o mercado, reduzindo a dimensão de nossos egressos para uma simples mercadoria que vende sua força de trabalho em áreas que são demandadas pelo movimento da economia que busca, sempre, o lucro e acumular capital. A Figura 1, abaixo, mostra o mapa conceitual que nosso grupo produziu para pensar o capítulo que escrevemos para o Projeto RS Resiliência e Sustentabilidade (https://portal.fespsp.org.br/store/file_source/FESPSP/Documentos/RS/reflexao.pdf). É deste tipo de interrelações e complexidade que estamos falando. Tudo está relacionado.
 
Figura 1. Mapa conceitual do subprojeto Estratégias para Mitigação das Mudanças Climáticas no Bioma Pampa.
Fonte: Cruz et al. (2024).

O sistema se propaga para as outras instituições, pois gente formada assim somente irá reproduzir o mesmo modelo. Se as instituições não conseguem atuar de forma a confrontar a lógica da economia, obrigando uma negociação entre as comunidades e o capital para que negociações do tipo ganha-ganha sejam viáveis, não há como construir um futuro sustentável, nem adaptação e mitigação das mudanças climáticas. Por isso, estamos vivendo um verdadeiro colapso climático, pois ele é contraparte de um colapso civilizatório. Darcy Ribeiro na sua obra Processo Civilizatório, nos demonstrou como as civilizações nascem, crescem, tem seu auge e depois decrescem e morrem, em função da falta de capacidade de seus fundamentos tecnológicos de enfrentarem os seus próprios impactos socioambientais, causando um esgotamento e colapso civilizatório. Não bastam mudanças setoriais e adoção de novas tecnologias, pois não é a inovação da tecnologia em si que pode resultar em mudanças estruturais que viabilizem adaptação às mudanças, mas uma inovação socioambiental, onde a tecnologia está a serviço da qualidade de vida e da sustentabilidade e não da acumulação do capital, como vemos hoje.

Por isso tudo, de fato, os governos não estão preparados. Aqui no Rio Grande do Sul, que foi pioneiro no movimento ambientalista latino-americano e brasileiro, tivemos nos últimos anos de governos neoliberais, a alteração de 480 pontos da legislação ambiental estadual (https://revistaforum.com.br/meio-ambiente/2024/5/5/governo-de-eduardo-leite-atropelou-codigo-ambiental-do-rs-em-2019-158343.html) para facilitar empreendimentos do agronegócio e outras atividades (https://www.ufrgs.br/iph/wp-content/uploads/2024/05/Nota-Profagua-LEGISLACAO-AMBIENTAL-NO-AMBITO-DA-GESTAO.pdf). Entre elas a facilitação de conversão de uso da terra para ampliação do agronegócio da monocultura da soja. Nossos estudos demonstraram que isso resultou em uma redução da capacidade de água disponível nos solos, agravando situações de excedentes e déficits hídricos, reduzindo a resiliência das bacias hidrográficas para secas e enchentes.

Ou seja, sem as mudanças estruturais no sistema educacional, as mudanças não acontecerão nas demais instituições.

As "mudanças" efetuadas pelo governo atual não são estruturais, portanto não preparam para o enfrentamento. Todas são superficiais e baseadas na lógica neoliberal, que acredita que o mercado resolve tudo.

As medidas que propusemos não estão sendo encaminhadas. Por exemplo,  a irrigação faz parte da pauta de adaptação. Mas quando associada à monocultura, em um quadro de aumento da evaporação resultante do aquecimento da atmosfera, não pode ser baseada nas tecnologias de inundação ou aspersão, pois são ineficientes e reduzirão a possibilidade de outorga da maioria, pois haverá redução de disponibilidade hídrica. Tecnologias devem priorizar sistemas de gotejamento no solo em sistemas agroecológicos. Mas a pauta hegemônica no governo é fazer barragens e financiar sistemas de irrigação sem avaliar a sustentabilidade. E sem critérios ambientais, pois facilitaram o movimento do capital do agronegócio com a desregulamentação das políticas ambientais.











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